“Hoje você não precisa me dar banho, nem me dar remédios e menos ainda, comida.”
Surpresa com aquelas ordens, perguntei-lhe o que havia acontecido, ao que me respondeu muito claramente:
“Como você tem acompanhado, a cada mês tenho retirado um medicamento entre todos os que tomo diariamente e nenhuma diferença para pior tenho percebido em relação às dores que sinto o tempo todo e à depressão. Há muito não consigo dormir à noite por causa das dores e do desconforto físico e diminuindo a quantidade de remédios, não percebi modificação alguma no meu quadro. Então, passei o dia de ontem e de hoje refletindo a respeito do que passou a ser a minha vida e conclui que tenho me mantido viva apenas para engrossar as estatísticas médicas, servir como cobaia para os laboratórios médicos enquanto os sustento. Assim, percebo que daqui para a frente, estarei vivendo apenas para alimentar pesquisas, já que meu estado só tende a piorar, com remédios ou sem eles. Tomei uma decisão e não tente me fazer voltar atrás. Ingeri meio vidro deste analgésico forte à base de ópio (mostrou-me o vidro) porque decidi que não quero mais viver.”
Que susto! Mal conseguia raciocinar diante daquela revelação! Tentei conversar com ela a respeito da sua decisão, argumentando:
“ Mas, a senhora sabe, não cabe a nós decidirmos sobre viver ou morrer. Esta é uma decisão que cabe mesmo apenas a Deus e sobre a qual nada podemos fazer. A senhora tem a sua fé em Deus, a fé na sua Igreja...Quer que eu chame aquela moça que costuma vir aqui dar a comunhão, para conversar com a senhora, ou então o Pastor?”
Ao que ela respondeu com uma impressionante firmeza na voz:
“ Eu quero ficar aqui sozinha, aguardando o momento da minha morte simplesmente. Sempre soube também que cabe a Deus decidir a hora de irmos desta vida, mas, só agora entendo que em algumas circunstâncias é a gente mesmo que tem que decidir o que fazer com a própria vida, afinal, é um direito que eu tenho, já que a vida é minha. Há anos que minha vida se transformou em apenas sofrimento, sinto dores intermitentes o dia todo, mal consigo dormir, gasto quase tudo o que recebo de minha aposentadoria com medicamentos. Como lhe contei, fiz esta experiência e constatei que os remédios que eu tomo não estão me fazendo a menor diferença. Não existe possibilidade de cura para esta minha doença e você ainda me diz que eu não tenho autoridade para decidir o momento da minha morte? E por acaso, o que tenho vivido não é estar morrendo a cada dia mais um pouco sem perspectiva alguma de vida? Não...não chame ninguém de religião alguma, pois, nada poderão fazer por mim, menos ainda me convencer a continuar nesta vida. Afinal, eu também fiquei aqui me perguntando o que foi que eu ganhei sendo fiel a minha Igreja por toda uma vida e o que é que ela acrescentou a mim em termos de fé. E sabe o que descobri? Que durante toda minha vida paguei o dízimo para esta minha igreja que não me serviu para nada, especialmente nos momentos de maior dificuldade. Reconheço a boa vontade daquela senhora que semanalmente vem me visitar e me dar a comunhão, mas, além disto, nada mais ela faz por mim...”
Inconformada, tentei mais uma vez:
“ Vou chamar aqueles seus amigos que tanto bem te querem, para levá-la para fazer uma lavagem intestinal no Hospital.”
Ao que ela prontamente me respondeu:
“ Não, não chame não. Deus me livre se eles souberem que eu fiz isso, vão querer mesmo me levar para o Hospital para eu fazer uma lavagem e vão ficar loucos da vida comigo! Nem pensar!“
Ao que eu respondi:
“Então, vamos rezar e pedir a Deus que te ilumine e que te ampare neste momento...” (E foi neste momento, que percebi que eu não havia aprendido a rezar em Inglês). Então, lhe disse: “Eu rezo em Português e a senhora reza em Inglês, ok?” Ela fez que sim com a cabeça e começamos a rezar cada uma no seu idioma. Então, disse-lhe que não tinha coragem de deixá-la sozinha à noite e que iria permanecer lá com ela. Ela me proibiu de permanecer com ela durante a noite, me recomendou que voltasse para casa e ficasse tranqüila e deixasse ela sozinha morrer em paz. Ao que eu lhe argumentei, tentando persuadi-la mais uma vez:
“A senhora já parou para pensar que existe a possibilidade de não morrer e ainda ficar com sérios problemas renais pelo excesso de medicamento forte, além de correr também o risco de ficar com alguma seqüela no cérebro?”
Ela riu e me respondeu:
“ Minha filha, eu já pensei nisto. Se por acaso eu não morrer assim tão depressa quanto gostaria, o máximo que poderá acontecer é você ligar para o 911 (emergência/paramédicos) e eles me levarem para o Hospital, aonde depois de alguns dias eu estarei morta e fim.”
Enfim, fui ficando cada vez mais sem argumentos. E falei:
“A senhora pensou que eu serei a única testemunha da sua morte e no quanto isto é sério?”
Ela então argumentou:
“Por isto mesmo é que eu não quero que você permaneça a noite toda comigo aqui. Vá para sua casa. Não conte nada a ninguém. Confio na sua lealdade. Amanhã , quando você chegar, irá me encontrar morta e então, aí sim, você pode chamar o 911, meus amigos, ligar para os meus sobrinhos e tudo o mais, mas não diga a eles que eu fui que provoquei a morte. Promete?...”
Pensei:- “Neste ponto, ela tem razão. Afinal, sendo eu uma estrangeira, latina e brasileira, serei sem sombra de dúvida a única suspeita de ter cometido este assassinato. Não havia mais outra saída diante destes argumentos todos, a não ser concordar com ela.”
Despedi-me dela e voltei para casa rapidamente, aflita para relatar para o meu companheiro o que estava acontecendo. Ficamos ali discutindo quais as possibilidades de modificar em algum ponto aquele quadro insólito, porque havia me decidido a respeitar sua decisão e a permanecer em silêncio, já que seu último desejo fora a minha cumplicidade silenciosa. Sem conseguirmos encontrar outra saída, nos pusemos a pedir aos céus, a Deus, auxílio e luz. Aquela havia sido uma noite especialmente difícil para mim. Mal consegui conciliar o sono e a toda hora conversava com meus amigos espirituais pedindo tranqüilidade para mim e bênçãos para ela. Na manhã seguinte logo cedo, lá estava eu em sua casa. Como tinha a chave, fui logo entrando. Encontrei-a sentada naquela sua velha poltrona, dormindo profundamente, exatamente como a havia deixado na véspera. Ela não estava morta, pois respirava profundamente. Ajoelhei-me ao seu lado, tentando falar-lhe ao ouvido, em vão. Pus-me então, a orar pedindo a Deus sua bênçãos para aquele momento. Tentei chamá-la mais algumas vezes em vão. Decidi então ir até a agência através da qual trabalhava e reportei à supervisora que havia encontrado aquela paciente dormindo, sem conseguir acordá-la. Comentei-lhe da minha suspeita de que algo de anormal estivesse acontecendo, já que geralmente, quando eu chegava em sua casa, ela acordada já estava me aguardando. Contei-lhe que havia tentado algumas vezes acordá-la, mas em vão, pois, ela dormia profundamente. Forneci-lhe o nome daquele casal seu amigo e do sobrinho de Illinois, para que ela tomasse as providências em torno do fato, já que de acordo com a minha agenda de trabalho, haviam mais 2 clientinhas a quem ainda iria servir ao longo daquele dia (permanecia de 3 a 4 horas por vez apenas em cada cliente). Chegando em casa, no fim do dia, recebi o telefonema da supervisora dando notícias assim como também, daquele seu amigo (do casal amigo). Ambos foram muito atenciosos a me reportar as notícias. O casal de amigos assim que recebeu a notícia da minha supervisora, se dirigiu à casa da minha clientinha. Preocupados, chamaram o 911 (ambulância/ emergência) para levá-la para o Hospital. Ainda estava sob observação, havia se submetido a vários exames, mas, os médicos suspeitavam que ela tivesse tomado uma dose muito forte dos medicamentos contra dor e por isto, ainda estava em estado de sonolência profunda. Diariamente, seu sobrinho de Illinois, que havia ido para a Flórida com a esposa, para acompanhar a tia no Hospital, me telefonava dando notícias. O quadro não havia se modificado e após 5 dias hospitalizada ela veio a falecer. O sobrinho me telefonou, pedindo que eu fosse até a casa dela, onde ele e a esposa estavam, queriam conversar comigo a respeito dela, contar-me como foi que tudo havia transcorrido durante a sua estadia no Hospital e me pagar pelo trabalho realizado até o dia da sua internação hospitalar. Chamei todos os amigos espirituais que pude, pedi um reforço de proteção divina e lá fui, levando a chave, para devolvê-la. Para minha surpresa, o casal de sobrinhos era educadíssimo, como ela, e fui recebida por eles com um enorme carinho. Fiquei sabendo pelo casal, que ela havia acordado após 3 dias de internação e de desintoxicação, mas, que para surpresa de todos, não estava conseguindo falar, pois indagada várias vezes a respeito do que havia acontecido, olhava para os médicos, para os sobrinhos, para os enfermeiros e nada respondia, como se não estivesse conseguindo entender o que eles falavam. Mostrei-lhe todos os medicamentos que ela tomava, apresentei-lhes os lugares onde ela guardava as jóias, o dinheiro, os cartões de crédito, o caderno de controle de gastos, enfim, fui apresentando a eles tudo de que eles precisariam saber a partir daquele momento, para agilizar as providências que teriam pela frente. Contei-lhes que ela estava em dia com o meu pagamento, me devendo apenas por 2 dias de trabalho prestado, ao que recebi imediatamente. Entristecidos, perguntaram porque motivo teria ela tomado uma dose tão elevada do medicamento contra a dor, ao que lhes respondi que ela vivia muito solitária e sentia dores terríveis o tempo todo. Não reclamava de nada, era muito atenciosa, educada e carinhosa, mas, era uma pessoa triste. Assim, me despedi e me coloquei à disposição caso necessitassem, deixando o número do meu telefone. Ufah!...Suspirei aliviada. Pude corresponder ao compromisso de lealdade e cumplicidade que havia assumido com ela e ao mesmo tempo, ter podido tomar providências para que ela recebesse um atendimento hospitalar adequado. Passei o resto da semana pensando e rezando muito, pedindo por ela, refletindo muito acerca da ética e da justiça divina, pensando em quem há de acusar esta senhora de ter cometido um ato de desrespeito contra a vontade de Deus, decretando o fim de uma vida sem vida, de uma quase morte, cheia de muito sofrimento e de muita dor, em direção a resultado nenhum, a não ser o adiamento de sua morte espontânea. Afinal, como ela mesma havia me dito: “... tenho o direito sim de decidir em que momento devo partir...” Acredito que ela deve ter partido em um estado mais feliz do que o de seus últimos meses e que deve ter ficado satisfeita em notar pelo comportamento de todos ao seu redor, que eu havia honrado meu compromisso de cumplicidade silenciosa e fiel. Mas, cá entre nós, diz para mim, você agiria de outra maneira diante destas circunstâncias?
Lúcia M.