domingo, 11 de abril de 2010

Presentes que a vida nos dá

Uma vez, Joana, uma amiga mais jovem do que eu, me confidenciou que se achava indigna de receber "presentes" da vida.
Isto é, subliminarmente se desprezava por uma série de comportamentos não muito apreciáveis, como letargia, preguiça mental, vontade de não fazer nada, muito sono em horas em que era esperado que estivesse alerta para produzir, para ganhar a vida, para progredir, para tornar-se enfim "gente grande" etc.
Por estes motivos, discretamente vivia se esquivando de tudo e de todos que pudessem representar desafios ao seu "PeterPan" interno cultivado, alimentado e mimado diariamente por décadas.
Nesta tentativa inconsciente de alimentar seu "Peter Pan", jamais havia se permitido de verdade se envolver amorosamente com alguém. “Ficava”, namorava por algumas semanas e logo criava uma lista interminável de defeitos que transformavam qualquer perspectiva de qualquer experiência de uma vida a dois em um projeto simplesmente impraticável.
Então, nos intervalos entre um "ficar" e outro, entre um namoro relâmpago e outro era quando mais era vista em festas, encontros, eventos, sempre carregada de muito charme e movida àquela que era considerada a mais inofensiva das drogas, a amiga maconha – afinal, a alegria e a descontração tinham que ser adjetivos que a qualificassem para quem quer que a visse, para quem quer que compartilhasse com ela o mesmo espaço, o mesmo evento, encontro, bate-papo ou o que fosse.
Ser descontraida e "desestressada" era uma imagem que gostava de cultivar, e afinal, é para isto que existem os "aditivos externos", não é mesmo?
Afinal, ela era jovem, bonita, culta, tinha um corpo bem proporcionado para os seus 28 anos, precisava apenas de um estímulo para além destas qualidades e de muitas outras, ser reconhecida como "alegre e descontraida".
Certa vez, em uma viagem de férias pelo Norte, na figura de um moreno de 32 anos, o amor bateu às portas do seu coração rebelde, o que provocou uma súbita e forte vontade de compartilhar a vida com um outro "eu" que não mais apenas o seu próprio solitário.
O rapaz que capturou seus sentimentos mais profundos, que inspirou novos sonhos, novos planos, projetos e desejos de realização, já havia há muito superado a fase de se achar na obrigação de ser "alegre e descontraido" e embora não fosse um tipo eminentemente sério, era tranqüilo, convicto em suas escolhas de vida, feliz em sua caminhada profissional, culto, viajado e se encontrava exatamente no ponto de iniciar um caso de amor consistente, duradouro e promissor.
Como uma pulga coçando, coçando, se escondendo nas dobras das roupas, aquele encontro a incomodava enquanto lhe inspirava ao mesmo tempo os melhores impulsos, os mais elevados desejos,e planos, incluindo o de criar uma família com um filho, ou dois, ou três, e provocava certo desconforto muito íntimo, um grande conflito interno.
Começou a se questionar se estava enlouquecendo e recorria à amiga maconha, como sua confidente e consoladora, naquele processo tão delicado em que se encontrava, entre continuar a ser a aventureira inconseqüente nas viagens amorosas ou ceder ao forte apelo de se envolver de vez com todo seu coração e modificar tudo na sua história de vida, seguindo a estrada que se anunciava pela placa: "caminho dos apaixonados e dos comprometidos com a vida".
Confidenciou-me que o que a incomodava profundamente era o fato de ser viciada em maconha e reconhecia que aquele hábito, que a tornava uma pessoa desestressada, relaxada e inconseqüente, de certa forma, era um fio que ainda a mantinha alinhada com os adolescentes.
Tinha consciência do quanto, neste momento da sua vida, se sentia indigna daquele romance e de todo aquele aquele sentimento, jamais experimentado até então, despertava nela, fazendo-a tremer por dentro.
Afinal, ele era bonito e simpático e honesto acima de tudo.
Achava-se "não" merecedora de tamanha dádiva. Dizia que achava que "era areia demais para o seu caminhãozinho"...
Depois de tanto tempo fugindo de relacionamentos que durassem mais do que 2 meses, viu-se pressionada pela força do amor.
Enquanto escutava suas histórias,fui enxergando escondida num canto escuro, uma menina mimada e insegura, com medo de crescer, que se negava por isto mesmo ao direito de ser amada intensamente, de ser admirada sem artifícios, sem máscaras, apenas por ser como era.
Nâo reconhecia seu direito divino de ser merecedora do que poderia existir de mais forte, que era sentir-se amada e amar numa intensidade capaz de criar toda uma nova história, incluindo criar vidas...
Depois de algumas horas de conversa, lá se foi ela, cheia de perguntas a serem respondidas ao longo da semana, após longas conversas consigo mesma, sozinha.
Prometeu-me retornar depois de extamente uma semana, com todas as respostas na "ponta da língua" sem gaguejar uma vez sequer.
Envolta nas questôes de amor, como presa dentro de uma nuvem muito espessa, passei aquela semana meditando a respeito da força que representa o amor genuino e de tudo que faz parte deste contexto. Fui desenrolando fios e mais fios em minha mente, farejando todas as facetas possiveis relacionadas ao tema.
E foi quando percebi o quanto as pessoas boicotam para si mesmas as oportunidades de criar uma energia intensa, estimulante e nova em suas vidas, através do amor, pelo fato de não se perdoarem por falhas cometidas num tempo distante, por não se enxergarem como capazes – seja lá do que – de serem amadas sinceramente, de serem bem sucedidas, de serem pródigas, de cultivarem a abundância, de serem bem sucedidas profissionalmente, de constituirem uma família bonita, sadia, amorosa (e feliz a maior parte do tempo, pelo menos). Fiquei me questionando se isto tudo não seria fruto de uma cultura de estimulação ao medo, levando-nos a nos distanciarmos cada vez mais do sentimento genuino do amor e de nós mesmos?
Seguindo por esta trilha de reflexão, graças a este episódio, consegui identificar a semente da manifestação da inveja, do desejo de vingança, da avareza, da ambição que a nada e a ninguém respeita na mira do sucesso, da corrupção, da malandragem, da preguiça e até mesmo das dependências às drogas para represar sentimentos rejeitados interiormente, drogas que produzem a transformação de uma atitude socialmente não-confortável em algo socialmente esperado, como a transformação da mais recôndita depressão em expansiva alegria, como a transformação da rebeldia em passividade.
É incrivel o obstáculo que a nossa cultura - assentada também na expectativa de "sucesso" imediato - gera a negação ao reconhecimento pessoal como seres individualmente valiosos, cheios de qualidades dignas de serem exploradas e potencializadas e de nos reconhecermos enfim, como seres divinos, com poderes de transmutar, de criar, de gerar tudo aquilo que desejarmos a partir de nossa força e energia. Movidos pelo sentimento de gratidão e de sermos dignos merecedores de todos os bons presentes que a Vida pode nos oferecer – sem cobranças, sem auto-punições, mas, amorosa e respeitosamente.
Joana retornou uma semana depois. Seus olhos verdes pareciam duas esmeraldas reluzentes.
Pela energia que emitia, logo percebi a mudança de caminho a que havia se proposto em nome do amor, mas mantive-me quieta, aguardando seu desabafo.
Sentou-se confortavelmente na poltrona, olhou-me fixo nos olhos e após um longo suspiro disse: - "Obrigada pela ajuda. Passei a semana em recolhimento, "fechada para balanço" e consegui tomar algumas decisões muito íntimas, incluindo a de modificar uma série de hábitos, vícios de comportamento, como o culto a "Peter Pan". Decidi me envolver com todo o meu ser neste amor que me faz tremer de emoção e de alegria, cada vez que penso nele. A menininha insegura e adolescente se despede e agradece pela paciência com que tem sido acolhida por todos estes anos de vida. A partir de agora, começo nova caminhada em nova direção e porque me considero merecedora de mais este presente que a Vida está me ofertando, vou me dedicar inteiramente a este relacionamento."
Abraçou-me fortemente, beijou-me a face molhada, enquanto as lágrimas escorriam descontroladamente. Ela chorava, eu chorava.
Juntas nos encaminhamos até a janela onde se podia apreciar um maravilhoso pôr-do-sol e em silêncio, agradecemos a Deus pela genialidade em ter inventado e criado a força mais transformadora desta vida chamada amor.
Três meses depois, encontramo-nos em sua casa, num almoço em família, para comemoração de seu aniversário.
Nesta ocasião, tive o prazer de conhecer Ronaldo, assim como os familiares de ambos. A alegria e a harmonia eram a tônica daquele aconchegante encontro.
Encerrado o almoço, após a sobremesa, Ronaldo a pediu em casamento diante de todos. Risos, lágrimas, abraços afetuosos, brindes, todos comemoraram com total satisfação aquele momento.
Joana convidou-me para ser madrinha de seu casamento. Emocionamo-nos e nos abraçamos logamente, com muito afeto.
Sete meses depois, o casamento se realizou, com muita simplicidade e bom gosto, cercado do carinho e da alegria dos familiares mais íntimos.
Hoje, seis anos após, Joana e Ronaldo, com três filhos, moram em Bologna, onde foi convidado a dar aulas. Todos juntos viajam todo ano para o Brasil, pelo Natal e a passagem do ano, aproveitando para se aquecer um pouco sob o sol tropical de verão e o carinho dos familiares.
Amam-se muito, tratam os filhos com muito desvelo e carinho. São crianças fortes, inteligentes e aparentam uma tranqüilidade que traduz seu senso de proteção e de afeto.
Sinto-me feliz por poder acompanhar seu caminhar.
Encontramo-nos sempre que vêm ao Brasil e nos falamos sempre pelo “skype”, para atualizarmos as notícias e trocarmos afetos.
O cabelo de Ronaldo já começa a apresentar um tom grisalho, o que lhe dá um ar de experiente, embelezando-o ainda mais.
Joana, a cada vez que a encontro, me parece mais bonita, mais madura. Exala uma felicidade indisfarçável. Dedicada aos filhos, decidiu voltar a estudar e cursa Nutrição no período em que as crianças ficam na escola.
Ronaldo diariamente os pega na saida da escola e todos se encontram em casa, para se dedicarem às suas tarefas e ao convívio familiar.
Meu sentimento por todos eles é tão forte e que é como se fossemos parentes consangüíneos.
Joana se reconquistou realmente, graças ao amor entre ela e Ronaldo. Continuam apaixonados e mantem um relacionamento completamente saudavel alicerçado na amizade, na cumplicidade e no amor.
Este ano estou me programando para ir visitá-los por uma semana, logo mais, na primavera, aproveitando uma oportunidade realmente interessante que apareceu..

Lúcia M.

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