sábado, 23 de janeiro de 2010

Questão ética

A ética é uma tênue linha, que de tão fina, muitas vezes, nos confunde. Li no jornal esta semana uma notícia sobre uma mulher, na Inglaterra, que foi a julgamento e foi condenada à prisão diante da acusação de ter auxiliado a própria filha a morrer. Aquela filha que havia sido morta a seu pedido por sua mãe sofria de uma doença chamada “Esclerose múltipla” há 15 anos, sem qualquer esperança ou perspectiva de poder um dia viver uma vida próxima do que conhecemos como “normal”. As circunstâncias que envolveram este fato, ficaram passeando dentro de mim por alguns dias seguidos, com um forte sentimento de compaixão para com esta mulher e sua filha e tantas outras pessoas que vivem e viveram situações semelhantes. Testemunhei uma situação muito próxima a esta, que representou uma experiência única e que me levou a começar a pensar sobre a vida, a morte e a justiça de Deus sob um novo enfoque... E é esta minha experiência que quero aqui compartilhar com você. Quando morava na Flórida (Estados Unidos) trabalhei como cuidadora de senhorinhas idosas e doentes. Havia uma delas, viúva de 86 anos, que morava sozinha, como quase todas elas. Era muito educada, muito culta, atenciosa, delicada, muito lúcida, uma preciosa raridade, embora estivesse sempre muito triste. Havia sido casada por 28 anos, tendo conhecido seu falecido marido quando solteira, já madura, com 48 anos. Contava-me com humor, em um estilo muito direto, saudosista e amoroso, passagens de sua vida e das viagens que realizou ao lado do seu companheiro, que também como ela, havia se casado solteiro e sem filhos com idade já beirando os cinqüenta anos. Não era difícil perceber a forte ligação existente entre os dois, refletindo que haviam sido grandes amigos e companheiros. Havia ficado viúva há alguns anos apenas. Seu marido fora vítima do Mal de Alzheimer e então, por 7 anos ela havia lhe dedicado sua energia, sua vitalidade, sua atenção e seu carinho até sua morte. No último ano de vida dele, em função da situação que havia se tornado insustentável, recorreu ao auxílio de um enfermeiro para auxiliá-la. Um ano após sua viuvez, contraiu uma doença que junto com depressão, apresenta um estado de inflamação geral nas fibras musculares do corpo todo, chamada fibromialgia (ainda sem cura pela Medicina Clássica). Tomava uma coleção de medicamentos, sendo a maioria constituída de analgésicos fortes, já que sentia dores intermitentes por 24 horas, além de antidepressivos. Tomava também um regulador de intestino, pois, apresentava disfunção em conseqüência da fibromialgia. Na cabeça usava um turbante, já que havia perdido o cabelo e não se animava em se apresentar com uma das sua 10 perucas que ficavam guardadas em seu armário. Esta senhora passava seus dias sentada em uma poltrona reclinável, se alimentando muito pouco, lendo jornal, assistindo TV e dormindo rápidos sonos. Alem disso, sua vida se resumia em consultar os arquivos de sua memória, relembrando fatos marcantes vividos. Até para dormir, preferia a poltronona, que dizia ser mais confortável do que sua cama. Entre outras coisas, cabia a mim acompanhá-la às visitas a médicos, fazer as compras da casa, incluindo os medicamentos que não eram poucos e que custavam-lhe quase dois mil dólares por mês. Havia um casal de amigos que semanalmente a visitavam, passando as tardes conversando e a distraindo carinhosamente. Havia uma senhora da Igreja Presbiteriana que semanalmente comparecia, lendo uma passagem da Bíblia e orando em conjunto para, em seguida, lhe dar a “comunhão”. Esta “comunhão” era constituída de um mini cálice de suco de uva puro e uma hostiazinha minúscula. Ela contribuía mensalmente com a Igreja doando a décima parte de seu ganho (o dízimo) e recebia mensalmente um Boletim com notícias da sua comunidade religiosa e matérias de fundo religioso, que me pedia para jogar no lixo assim que ela passava em revista as correspondências do dia. Semanalmente, um de seus sobrinhos lhe telefonava de Illinois, indagando por notícias e enchendo a sua alma de afeto e de alegria. Assim eram seus dias... Assim foram nossos dias por 10 meses. Certa tarde, assim que lá chegara, ela foi logo me dizendo:
“Hoje você não precisa me dar banho, nem me dar remédios e menos ainda, comida.”
Surpresa com aquelas ordens, perguntei-lhe o que havia acontecido, ao que me respondeu muito claramente:
“Como você tem acompanhado, a cada mês tenho retirado um medicamento entre todos os que tomo diariamente e nenhuma diferença para pior tenho percebido em relação às dores que sinto o tempo todo e à depressão. Há muito não consigo dormir à noite por causa das dores e do desconforto físico e diminuindo a quantidade de remédios, não percebi modificação alguma no meu quadro. Então, passei o dia de ontem e de hoje refletindo a respeito do que passou a ser a minha vida e conclui que tenho me mantido viva apenas para engrossar as estatísticas médicas, servir como cobaia para os laboratórios médicos enquanto os sustento. Assim, percebo que daqui para a frente, estarei vivendo apenas para alimentar pesquisas, já que meu estado só tende a piorar, com remédios ou sem eles. Tomei uma decisão e não tente me fazer voltar atrás. Ingeri meio vidro deste analgésico forte à base de ópio
(mostrou-me o vidro) porque decidi que não quero mais viver.”
Que susto! Mal conseguia raciocinar diante daquela revelação! Tentei conversar com ela a respeito da sua decisão, argumentando:
“ Mas, a senhora sabe, não cabe a nós decidirmos sobre viver ou morrer. Esta é uma decisão que cabe mesmo apenas a Deus e sobre a qual nada podemos fazer. A senhora tem a sua fé em Deus, a fé na sua Igreja...Quer que eu chame aquela moça que costuma vir aqui dar a comunhão, para conversar com a senhora, ou então o Pastor?”
Ao que ela respondeu com uma impressionante firmeza na voz:
“ Eu quero ficar aqui sozinha, aguardando o momento da minha morte simplesmente. Sempre soube também que cabe a Deus decidir a hora de irmos desta vida, mas, só agora entendo que em algumas circunstâncias é a gente mesmo que tem que decidir o que fazer com a própria vida, afinal, é um direito que eu tenho, já que a vida é minha. Há anos que minha vida se transformou em apenas sofrimento, sinto dores intermitentes o dia todo, mal consigo dormir, gasto quase tudo o que recebo de minha aposentadoria com medicamentos. Como lhe contei, fiz esta experiência e constatei que os remédios que eu tomo não estão me fazendo a menor diferença. Não existe possibilidade de cura para esta minha doença e você ainda me diz que eu não tenho autoridade para decidir o momento da minha morte? E por acaso, o que tenho vivido não é estar morrendo a cada dia mais um pouco sem perspectiva alguma de vida? Não...não chame ninguém de religião alguma, pois, nada poderão fazer por mim, menos ainda me convencer a continuar nesta vida. Afinal, eu também fiquei aqui me perguntando o que foi que eu ganhei sendo fiel a minha Igreja por toda uma vida e o que é que ela acrescentou a mim em termos de fé. E sabe o que descobri? Que durante toda minha vida paguei o dízimo para esta minha igreja que não me serviu para nada, especialmente nos momentos de maior dificuldade. Reconheço a boa vontade daquela senhora que semanalmente vem me visitar e me dar a comunhão, mas, além disto, nada mais ela faz por mim...”
Inconformada, tentei mais uma vez:
“ Vou chamar aqueles seus amigos que tanto bem te querem, para levá-la para fazer uma lavagem intestinal no Hospital.”
Ao que ela prontamente me respondeu:
Não, não chame não. Deus me livre se eles souberem que eu fiz isso, vão querer mesmo me levar para o Hospital para eu fazer uma lavagem e vão ficar loucos da vida comigo! Nem pensar!“
Ao que eu respondi:
“Então, vamos rezar e pedir a Deus que te ilumine e que te ampare neste momento...” (E foi neste momento, que percebi que eu não havia aprendido a rezar em Inglês). Então, lhe disse: “Eu rezo em Português e a senhora reza em Inglês, ok?” Ela fez que sim com a cabeça e começamos a rezar cada uma no seu idioma. Então, disse-lhe que não tinha coragem de deixá-la sozinha à noite e que iria permanecer lá com ela. Ela me proibiu de permanecer com ela durante a noite, me recomendou que voltasse para casa e ficasse tranqüila e deixasse ela sozinha morrer em paz. Ao que eu lhe argumentei, tentando persuadi-la mais uma vez:
“A senhora já parou para pensar que existe a possibilidade de não morrer e ainda ficar com sérios problemas renais pelo excesso de medicamento forte, além de correr também o risco de ficar com alguma seqüela no cérebro?”
Ela riu e me respondeu:
“ Minha filha, eu já pensei nisto. Se por acaso eu não morrer assim tão depressa quanto gostaria, o máximo que poderá acontecer é você ligar para o 911 (emergência/paramédicos) e eles me levarem para o Hospital, aonde depois de alguns dias eu estarei morta e fim.”
Enfim, fui ficando cada vez mais sem argumentos. E falei:
“A senhora pensou que eu serei a única testemunha da sua morte e no quanto isto é sério?”
Ela então argumentou:
“Por isto mesmo é que eu não quero que você permaneça a noite toda comigo aqui. Vá para sua casa. Não conte nada a ninguém. Confio na sua lealdade. Amanhã , quando você chegar, irá me encontrar morta e então, aí sim, você pode chamar o 911, meus amigos, ligar para os meus sobrinhos e tudo o mais, mas não diga a eles que eu fui que provoquei a morte. Promete?...”
Pensei:- “Neste ponto, ela tem razão. Afinal, sendo eu uma estrangeira, latina e brasileira, serei sem sombra de dúvida a única suspeita de ter cometido este assassinato. Não havia mais outra saída diante destes argumentos todos, a não ser concordar com ela.”
Despedi-me dela e voltei para casa rapidamente, aflita para relatar para o meu companheiro o que estava acontecendo. Ficamos ali discutindo quais as possibilidades de modificar em algum ponto aquele quadro insólito, porque havia me decidido a respeitar sua decisão e a permanecer em silêncio, já que seu último desejo fora a minha cumplicidade silenciosa. Sem conseguirmos encontrar outra saída, nos pusemos a pedir aos céus, a Deus, auxílio e luz. Aquela havia sido uma noite especialmente difícil para mim. Mal consegui conciliar o sono e a toda hora conversava com meus amigos espirituais pedindo tranqüilidade para mim e bênçãos para ela. Na manhã seguinte logo cedo, lá estava eu em sua casa. Como tinha a chave, fui logo entrando. Encontrei-a sentada naquela sua velha poltrona, dormindo profundamente, exatamente como a havia deixado na véspera. Ela não estava morta, pois respirava profundamente. Ajoelhei-me ao seu lado, tentando falar-lhe ao ouvido, em vão. Pus-me então, a orar pedindo a Deus sua bênçãos para aquele momento. Tentei chamá-la mais algumas vezes em vão. Decidi então ir até a agência através da qual trabalhava e reportei à supervisora que havia encontrado aquela paciente dormindo, sem conseguir acordá-la. Comentei-lhe da minha suspeita de que algo de anormal estivesse acontecendo, já que geralmente, quando eu chegava em sua casa, ela acordada já estava me aguardando. Contei-lhe que havia tentado algumas vezes acordá-la, mas em vão, pois, ela dormia profundamente. Forneci-lhe o nome daquele casal seu amigo e do sobrinho de Illinois, para que ela tomasse as providências em torno do fato, já que de acordo com a minha agenda de trabalho, haviam mais 2 clientinhas a quem ainda iria servir ao longo daquele dia (permanecia de 3 a 4 horas por vez apenas em cada cliente). Chegando em casa, no fim do dia, recebi o telefonema da supervisora dando notícias assim como também, daquele seu amigo (do casal amigo). Ambos foram muito atenciosos a me reportar as notícias. O casal de amigos assim que recebeu a notícia da minha supervisora, se dirigiu à casa da minha clientinha. Preocupados, chamaram o 911 (ambulância/ emergência) para levá-la para o Hospital. Ainda estava sob observação, havia se submetido a vários exames, mas, os médicos suspeitavam que ela tivesse tomado uma dose muito forte dos medicamentos contra dor e por isto, ainda estava em estado de sonolência profunda. Diariamente, seu sobrinho de Illinois, que havia ido para a Flórida com a esposa, para acompanhar a tia no Hospital, me telefonava dando notícias. O quadro não havia se modificado e após 5 dias hospitalizada ela veio a falecer. O sobrinho me telefonou, pedindo que eu fosse até a casa dela, onde ele e a esposa estavam, queriam conversar comigo a respeito dela, contar-me como foi que tudo havia transcorrido durante a sua estadia no Hospital e me pagar pelo trabalho realizado até o dia da sua internação hospitalar. Chamei todos os amigos espirituais que pude, pedi um reforço de proteção divina e lá fui, levando a chave, para devolvê-la. Para minha surpresa, o casal de sobrinhos era educadíssimo, como ela, e fui recebida por eles com um enorme carinho. Fiquei sabendo pelo casal, que ela havia acordado após 3 dias de internação e de desintoxicação, mas, que para surpresa de todos, não estava conseguindo falar, pois indagada várias vezes a respeito do que havia acontecido, olhava para os médicos, para os sobrinhos, para os enfermeiros e nada respondia, como se não estivesse conseguindo entender o que eles falavam. Mostrei-lhe todos os medicamentos que ela tomava, apresentei-lhes os lugares onde ela guardava as jóias, o dinheiro, os cartões de crédito, o caderno de controle de gastos, enfim, fui apresentando a eles tudo de que eles precisariam saber a partir daquele momento, para agilizar as providências que teriam pela frente. Contei-lhes que ela estava em dia com o meu pagamento, me devendo apenas por 2 dias de trabalho prestado, ao que recebi imediatamente. Entristecidos, perguntaram porque motivo teria ela tomado uma dose tão elevada do medicamento contra a dor, ao que lhes respondi que ela vivia muito solitária e sentia dores terríveis o tempo todo. Não reclamava de nada, era muito atenciosa, educada e carinhosa, mas, era uma pessoa triste. Assim, me despedi e me coloquei à disposição caso necessitassem, deixando o número do meu telefone. Ufah!...Suspirei aliviada. Pude corresponder ao compromisso de lealdade e cumplicidade que havia assumido com ela e ao mesmo tempo, ter podido tomar providências para que ela recebesse um atendimento hospitalar adequado. Passei o resto da semana pensando e rezando muito, pedindo por ela, refletindo muito acerca da ética e da justiça divina, pensando em quem há de acusar esta senhora de ter cometido um ato de desrespeito contra a vontade de Deus, decretando o fim de uma vida sem vida, de uma quase morte, cheia de muito sofrimento e de muita dor, em direção a resultado nenhum, a não ser o adiamento de sua morte espontânea. Afinal, como ela mesma havia me dito: “... tenho o direito sim de decidir em que momento devo partir...” Acredito que ela deve ter partido em um estado mais feliz do que o de seus últimos meses e que deve ter ficado satisfeita em notar pelo comportamento de todos ao seu redor, que eu havia honrado meu compromisso de cumplicidade silenciosa e fiel. Mas, cá entre nós, diz para mim, você agiria de outra maneira diante destas circunstâncias?

Lúcia M.

Um comentário:

  1. ai Lùcia, que barra pesada hein? Não, acho que respeitaria a decisão, nada pode ser imposto ao outro, ele precisa querer.A gente só lamenta porque sabe que existe outro caminho,que nenhuma existência é vã, mas que esta maneira de pensar e de agir tem que estar com a pessoa, é coisa que não se aprende, se incorpora. Beijo de dama.

    ResponderExcluir